Um detalhe é motivante de tudo isso: eu sou cega. Esse é um aspecto
concreto e muito improvável de ser modificado, um dia. Podem encontrar
termos grandiloquentes, imponentes, maquiados, politicamente corretos ou
incorretos, mas nada muda o fato central, o que não é obrigatoriamente
ruim.
Mas note que a questão começa e termina aí. Eu sou cega. Fim. Não há
nada de errado com minhas pernas, com meus ouvidos, e menos ainda com o
meu cérebro. Eu penso muito bem. Podem não ser sempre coisas boas e
certas, mas definitivamente eu consigo raciocinar, concatenar as idéias,
alinhar paradigmas.
Não sou santa. Posso mentir, se quiser. Posso caluniar. Posso fazer
péssimos julgamentos sem nenhuma base, então, definitivamente, não sou
santa.
Claro, tenho o compromisso de progredir sempre, de aprender com meus
erros, de fazer de mim mesma uma pessoa melhor, mais humana, mais
responsável e mais digna, mas, absolutamente, não estou sequer na metade
desse processo. Então, deixemos os extremos, as fantasias e os
preconceitos e cheguemos aos fatos. Eu sou cega. E humana. Um fato não
exlui o outro. Eles apenas se completam.
Do mesmo modo que existem humanos idiotas, humanos geniais, humanos
cadeirantes, humanos medíocres, humanos sentimentais, humanos
"umbigocÊntricos", existem humanos cegos - que podem, ou não, serem todas
essas coisas apontadas logo ali. Mas o essencial que preciso expressar,
é que a cegueira não traz, nem a incapacidade absoluta, nem a santidade
instantânea, nem a burrice extrema, nem nada disso. É simplesmente uma
característica, uma limitação que pode ou não ter um caráter realmente
limitante. A cegueira é o que o cego faz dela. Nós ainda temos escolha.
Temos harbítrio. Temos a chance de sair de nós mesmos e ir além de
falta de visão; do mesmo modo, podemos nos enterrar em nossos problemas
e lamentar o nosso nascimento, as mazelas sociais e a existência de
Deus, como qualquer pessoa normal.

Bem-vindos ao "Diário de uma cega""

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Além da voz, Além da visão

Quando estava esperando meu primeiro filho, sentia muita insegurança
quando ele fosse capaz de desejar, mas não de falar. Será que eu me
veria constrangida a usar um intérprete? E o que seria de nós, quando
não houvesse nenhum por perto?
Quando Kevo era pequeno, demos nosso jeito. Não lembro como, mas
nunca lembrei de escrever sobre. Mas a cena de agora merece ser
descrita.
Estava sentada no computador. Mariles, que tem 14 meses e não fala
ainda, veio engatinhando em minha direção. Ficou em pé e me chamou, uma
de suas únicas palavras claras. Puxou-me até o berço e colocou minha mão
na direção do interior. Peguei-a no colo. Coloquei-a no berço. Ela riu, feliz. Eu também ri:
de alegria de das minhas preocupações imaturas de antes.

***

Passeamos de carrinho. Em determinado ponto, ela diz "aqui, aqui, aqui".
Antes, fazia algo como "an, an, an!". Paramos. Coloco minha mão sobre
sua mão. Ela aponta o dedinho. Sigo na direção. Encontro vários objetos:
um brinquedo, uma mamadeira de água. Dou o brinquedo. Ela o atira longe.
Dou a mamadeira. Ela ri. Estamos juntas nisso.


***

Estou comendo um bolo. Ela dá gritinhos que me fazem pensar que ela
também quer. Colocada na cadeira, começo a lhe dar na boca. Até que ela
começa a sacudir a cabeça e a não abrir mais a boquinha. Está saciada.

Um comentário:

  1. Jo, amei o que você escreve!!! O amor é a melhor forma de se comunicar. Continue sempre... Bjs.
    PS: Não sei se lembra de mim, sou a Fernanda Zechinatto mãe da Giullia, que não conseguiu parir por pressão dessa sociedade hipócrita que só enxerga as limitações.

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