Um detalhe é motivante de tudo isso: eu sou cega. Esse é um aspecto
concreto e muito improvável de ser modificado, um dia. Podem encontrar
termos grandiloquentes, imponentes, maquiados, politicamente corretos ou
incorretos, mas nada muda o fato central, o que não é obrigatoriamente
ruim.
Mas note que a questão começa e termina aí. Eu sou cega. Fim. Não há
nada de errado com minhas pernas, com meus ouvidos, e menos ainda com o
meu cérebro. Eu penso muito bem. Podem não ser sempre coisas boas e
certas, mas definitivamente eu consigo raciocinar, concatenar as idéias,
alinhar paradigmas.
Não sou santa. Posso mentir, se quiser. Posso caluniar. Posso fazer
péssimos julgamentos sem nenhuma base, então, definitivamente, não sou
santa.
Claro, tenho o compromisso de progredir sempre, de aprender com meus
erros, de fazer de mim mesma uma pessoa melhor, mais humana, mais
responsável e mais digna, mas, absolutamente, não estou sequer na metade
desse processo. Então, deixemos os extremos, as fantasias e os
preconceitos e cheguemos aos fatos. Eu sou cega. E humana. Um fato não
exlui o outro. Eles apenas se completam.
Do mesmo modo que existem humanos idiotas, humanos geniais, humanos
cadeirantes, humanos medíocres, humanos sentimentais, humanos
"umbigocÊntricos", existem humanos cegos - que podem, ou não, serem todas
essas coisas apontadas logo ali. Mas o essencial que preciso expressar,
é que a cegueira não traz, nem a incapacidade absoluta, nem a santidade
instantânea, nem a burrice extrema, nem nada disso. É simplesmente uma
característica, uma limitação que pode ou não ter um caráter realmente
limitante. A cegueira é o que o cego faz dela. Nós ainda temos escolha.
Temos harbítrio. Temos a chance de sair de nós mesmos e ir além de
falta de visão; do mesmo modo, podemos nos enterrar em nossos problemas
e lamentar o nosso nascimento, as mazelas sociais e a existência de
Deus, como qualquer pessoa normal.

Bem-vindos ao "Diário de uma cega""

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Simplesmente farta

Hoje acordei simplesmente farta de estar cega. Não é o que não vejo que me sucumbiu. Tampouco o que não posso fazer. O fato é que estou cheia dos outros verem apenas minHa cegueira como móvel das minhas atitudes. Estou cansada de viver, das estrelas da admiração imerecida, aos vales do descrédito compulsório. Estou absurdamente farta da minha cegueira ser tudo que podem ver de mim. Dela justificar tudo que eu sou e tudo que eu não sei.
Objetivamente, estou farta de ser cega porque quero ser vista.
Entretanto, eventualmente me pregunto se os que mee vêem apenas pelo fiutro de minha deficiência, merecem me ver, no fim de contas.

O indivíduo é bem mais que ele mesmo. As limitações físicas ou emocionais, são apenas pontos de partida para o caminho. A vida é bem maior que todos nós.

"nossa vida é tão grande, tão grande
Que, para tocá-la quase se tem que morrer
Para poder viver".

Silvio Rodriguez

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Além da voz, Além da visão

Quando estava esperando meu primeiro filho, sentia muita insegurança
quando ele fosse capaz de desejar, mas não de falar. Será que eu me
veria constrangida a usar um intérprete? E o que seria de nós, quando
não houvesse nenhum por perto?
Quando Kevo era pequeno, demos nosso jeito. Não lembro como, mas
nunca lembrei de escrever sobre. Mas a cena de agora merece ser
descrita.
Estava sentada no computador. Mariles, que tem 14 meses e não fala
ainda, veio engatinhando em minha direção. Ficou em pé e me chamou, uma
de suas únicas palavras claras. Puxou-me até o berço e colocou minha mão
na direção do interior. Peguei-a no colo. Coloquei-a no berço. Ela riu, feliz. Eu também ri:
de alegria de das minhas preocupações imaturas de antes.

***

Passeamos de carrinho. Em determinado ponto, ela diz "aqui, aqui, aqui".
Antes, fazia algo como "an, an, an!". Paramos. Coloco minha mão sobre
sua mão. Ela aponta o dedinho. Sigo na direção. Encontro vários objetos:
um brinquedo, uma mamadeira de água. Dou o brinquedo. Ela o atira longe.
Dou a mamadeira. Ela ri. Estamos juntas nisso.


***

Estou comendo um bolo. Ela dá gritinhos que me fazem pensar que ela
também quer. Colocada na cadeira, começo a lhe dar na boca. Até que ela
começa a sacudir a cabeça e a não abrir mais a boquinha. Está saciada.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Por que eu não subi nos cascos

Consultório médico. A consulta era da Mariles, mas o Estêvao foi junto,
para dar mais autonomia à nossa secretária.
Uma senhora pergunta se "os dois são dela". Dizem que sim. Ela então
solta a grande pérola:
- Nossa, que judiação! E tanta gente querendo engravidar e não
conseguindo!
Louve-se a sinceridade...
A secretária da médica logo atalhou:
- Que isso! A Joyce cuida super bem das crianças, elas adoecem muito
menos que os filhos de muita mãe que enxerga por aí! (Etc, etc, etc).
E a mulher:
- Ah, mas Deus não devia permitir que criança nascesse pra ser
judiada desse jeito.
Concluí que a judiação era eu. Meus filhos não eram judiados porque
eram maltratados, mas porque tinham uma mãe cega. Durante todo o tempo,
fiquei quieta. O que eu poderia dizer?
Diante do desconhecido, alguns conhecem a teoria e entendem a
prática; outros vislumbram a prática e entendem a teoria; ouytros,
ainda, infelizmente para eles, vêem a prática e decidem que a teoria não
existe e a prática não é legítima.
O que eu poderia dizer, se ela era mais cega que eu?
Entrementes, a tv Brasil publicou uma reportagem sobre mães com
deficiências. Lá estava a mulherada surda, paraplégica, deficiente
mental e cega falando da prole. Isso porque o ser humano não é do
tamanho das suas limitações. O ser humano não é a deficiência que
carrega, mas a força que possui. Até onde vai o poder de superação de
uma pessoa? Eu não sei. Depende de cada uma. Depende da coragem que cada
indivíduo tenha de apreender do que vê, de recomeçar de si mesmo, de se
enxergar plenamente e, ainda assim, ou ainda, talvez por isso mesmo,
sentir-se digno de fazer-se maior que está.
Quanto às crianças, filhos podem ter mães caóticas ou exemplares, e
isso está mais ligado à personalidade delas que a s deficiências
cadastradas no CID.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Marco

Hoje, pela primeira vez, estêvão nos viu escrever em braille. Achou um máximo e se sentiu "o tal" ditando pequenas frases para a gente escrever. Compreensivelmente, também pediu para dar uma furadinha...
Meu pequenininho de 3 anos, que deus te abençoe...

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O que dói mais no preconceito é nossa falta de atitude

Cheguei a essa conclusão hoje, com um fato quotidiano e refletindo em
outros que me aconteceram.
Fui levar Mariles para vacinar. Entrei com ela na salinha e a
enfermeira logo foi dizendo: Vamos deitar ela aqui na maca... Eu disse
que não, que ela iria ser vacinada no meu colo. Ela disse que na maca
era mais fácil para a outra moça segurar. Eu disse simplesmente: sou
eu quem vou segurar.
Juro que o tom não foi agressivo nem defensivo. Foi apenas definitivo.
A vacina foi aplicada e eu praticamente esqueci do fato.
Meses depois, o Vi foi levar a Ma para fazer exame de sangue, há quando
do seu episódio de anemia ferropriva. Chegou ele lá, cego, segurando um
bebê e sem acompanhante. A enfermeira não hesitou: tirou a ma do colo
dele. E ele ficou indignado. Chegou lá em casa "nos cascos", rosnando
contra o preconceito das pessoas e o desrespeito. Só pude concordar, mas
fui incapaz de não perquirir: mas por que você deixou??? Ele embatucou.
Depois, disse que simplesmente "não conseguiu reagir na hora".
Lembrei de casos que vivi. Casos nos quais eu não consegui reagir. E
encontrei a raiva que ele estava sentindo. E achei ter percebido porque
ele ficou chateado e eu, não; e porque eu me chateava tanto antes e não
me chateava agora.
Kevo nasceu. O povo era dono de puxar ele do meu colo. Eu ficava
possessa! ME sentia aviltada como mãe e mulher e ser humano. Tinha
vontade de gritar. De xingar. Depois, passou, porque eu apenas passei a
dizer "não". Quando puxavam, eu puxava de volta: ela vai ficar aqui.
Porque eu sabia que ali era o melhor lugar para ela. Que uma pessoa que
não me respeitava, não tinha mais direito de pegá-la no colo que eu.
HHoje a Ma precisou fazer exame de sangue denovo, para continuidade do
tratamento da anemia. Eu pedi que o Vi fosse, e lhe disse: se eles
tentarem tirar ela de você, não deixe. Você é o pai. Você tem direito.
Eles só vão acreditar que tem capacidade de segurar sua filha, se você
lhes disser isso.
Aconteceu até pior. Disseram que iam colocar a Ma na maca para fazer
exame (um detalhe: no mês anterior eu fora e ela fe3z no meu colo). Ele
disse que não. A mulher insistiu. Ele voltou a reinterar. Ela chamou
outra. Ele voltou a negar. Leve tensão. Fizeram o exame com a Ma no colo
dele. E ele voltou sem raiva, mesmo o preconceito tendo vindo de duas
pessoas, não apenas de uma, como foi na primeira vez. .
Alguns diriam que é porque sua vontade foi respeitada no final. Pode
ser. Mas penso que a pedra de toque tenha sido a reação.
Quando nos tratam com preconceito e não reagimos, é como se
concordássemos com a pessoa. A raiva é dela, mas também é por nós, por
nossa c onivência; quando reagimos, dizemos a nós mesmos que aquela
visão diminuída a nosso próprio respeito não nso pertence, mas apenas à
inexperiência da pessoa que a tem. Nossa reação deixa o preconceito com
a pessoa, não conosco; faz-nos acreditar mais em nós mesmos e nos
respeitar também. Limita o acesso do outro a nossa auto-estima.
Pensamos que a reação é para o outro; qual nada! Somos nós os
principais beneficiados.

domingo, 25 de julho de 2010

Reais necessidades

Sugeriram que eu escrevesse um post sobre isso. Eu poderia escrever umas
cem linhas, mas acho que consigo em vinte:

Nós precisamos de pessoas que nos ajudem a explorar o mundo, o nosso
corpo e os nossos limites.
De pessoas que nos ajudem a assumir nosso papel perante a Vida.
De pessoas que nos mostrem quais nossas responsabilidades.
De pessoas que nos ajudem a ver nossas próprias falhas com levesa.
De pessoas que não coloquem nossos feitos em um microscópio e acreditem
que esse é o tamanho real deles.
De pessoas que estejam ao nosso lado, não debaixo de nós.
De pessoas que acreditem em nós, porque o potencial humano é plástico.
De pessoas capazes de mudar de opinião.

Nós, como todos no mundo, precisamos de pessoas com coragem de mergulhar
na vida e de transbordar, e jogar tudo uns sobre os outros, para depois
transbordar e ousar uma e outra e outra vez, infinitamente.

E por falar nas batatas fritas

Eu treinei mais duas vezes. Da última, pus gordura de menos e queimei a
panela.
Tem uma "peneirinha" que vem junto com a panela, e você pode
colocar a batata ali e encaixar a peneira na panela, na hora de fritar.
Eu juro que ainda não fiz por medo. Aquele óleo "gritando" soa tão
ameaçador!