Um detalhe é motivante de tudo isso: eu sou cega. Esse é um aspecto
concreto e muito improvável de ser modificado, um dia. Podem encontrar
termos grandiloquentes, imponentes, maquiados, politicamente corretos ou
incorretos, mas nada muda o fato central, o que não é obrigatoriamente
ruim.
Mas note que a questão começa e termina aí. Eu sou cega. Fim. Não há
nada de errado com minhas pernas, com meus ouvidos, e menos ainda com o
meu cérebro. Eu penso muito bem. Podem não ser sempre coisas boas e
certas, mas definitivamente eu consigo raciocinar, concatenar as idéias,
alinhar paradigmas.
Não sou santa. Posso mentir, se quiser. Posso caluniar. Posso fazer
péssimos julgamentos sem nenhuma base, então, definitivamente, não sou
santa.
Claro, tenho o compromisso de progredir sempre, de aprender com meus
erros, de fazer de mim mesma uma pessoa melhor, mais humana, mais
responsável e mais digna, mas, absolutamente, não estou sequer na metade
desse processo. Então, deixemos os extremos, as fantasias e os
preconceitos e cheguemos aos fatos. Eu sou cega. E humana. Um fato não
exlui o outro. Eles apenas se completam.
Do mesmo modo que existem humanos idiotas, humanos geniais, humanos
cadeirantes, humanos medíocres, humanos sentimentais, humanos
"umbigocÊntricos", existem humanos cegos - que podem, ou não, serem todas
essas coisas apontadas logo ali. Mas o essencial que preciso expressar,
é que a cegueira não traz, nem a incapacidade absoluta, nem a santidade
instantânea, nem a burrice extrema, nem nada disso. É simplesmente uma
característica, uma limitação que pode ou não ter um caráter realmente
limitante. A cegueira é o que o cego faz dela. Nós ainda temos escolha.
Temos harbítrio. Temos a chance de sair de nós mesmos e ir além de
falta de visão; do mesmo modo, podemos nos enterrar em nossos problemas
e lamentar o nosso nascimento, as mazelas sociais e a existência de
Deus, como qualquer pessoa normal.

Bem-vindos ao "Diário de uma cega""

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O que dói mais no preconceito é nossa falta de atitude

Cheguei a essa conclusão hoje, com um fato quotidiano e refletindo em
outros que me aconteceram.
Fui levar Mariles para vacinar. Entrei com ela na salinha e a
enfermeira logo foi dizendo: Vamos deitar ela aqui na maca... Eu disse
que não, que ela iria ser vacinada no meu colo. Ela disse que na maca
era mais fácil para a outra moça segurar. Eu disse simplesmente: sou
eu quem vou segurar.
Juro que o tom não foi agressivo nem defensivo. Foi apenas definitivo.
A vacina foi aplicada e eu praticamente esqueci do fato.
Meses depois, o Vi foi levar a Ma para fazer exame de sangue, há quando
do seu episódio de anemia ferropriva. Chegou ele lá, cego, segurando um
bebê e sem acompanhante. A enfermeira não hesitou: tirou a ma do colo
dele. E ele ficou indignado. Chegou lá em casa "nos cascos", rosnando
contra o preconceito das pessoas e o desrespeito. Só pude concordar, mas
fui incapaz de não perquirir: mas por que você deixou??? Ele embatucou.
Depois, disse que simplesmente "não conseguiu reagir na hora".
Lembrei de casos que vivi. Casos nos quais eu não consegui reagir. E
encontrei a raiva que ele estava sentindo. E achei ter percebido porque
ele ficou chateado e eu, não; e porque eu me chateava tanto antes e não
me chateava agora.
Kevo nasceu. O povo era dono de puxar ele do meu colo. Eu ficava
possessa! ME sentia aviltada como mãe e mulher e ser humano. Tinha
vontade de gritar. De xingar. Depois, passou, porque eu apenas passei a
dizer "não". Quando puxavam, eu puxava de volta: ela vai ficar aqui.
Porque eu sabia que ali era o melhor lugar para ela. Que uma pessoa que
não me respeitava, não tinha mais direito de pegá-la no colo que eu.
HHoje a Ma precisou fazer exame de sangue denovo, para continuidade do
tratamento da anemia. Eu pedi que o Vi fosse, e lhe disse: se eles
tentarem tirar ela de você, não deixe. Você é o pai. Você tem direito.
Eles só vão acreditar que tem capacidade de segurar sua filha, se você
lhes disser isso.
Aconteceu até pior. Disseram que iam colocar a Ma na maca para fazer
exame (um detalhe: no mês anterior eu fora e ela fe3z no meu colo). Ele
disse que não. A mulher insistiu. Ele voltou a reinterar. Ela chamou
outra. Ele voltou a negar. Leve tensão. Fizeram o exame com a Ma no colo
dele. E ele voltou sem raiva, mesmo o preconceito tendo vindo de duas
pessoas, não apenas de uma, como foi na primeira vez. .
Alguns diriam que é porque sua vontade foi respeitada no final. Pode
ser. Mas penso que a pedra de toque tenha sido a reação.
Quando nos tratam com preconceito e não reagimos, é como se
concordássemos com a pessoa. A raiva é dela, mas também é por nós, por
nossa c onivência; quando reagimos, dizemos a nós mesmos que aquela
visão diminuída a nosso próprio respeito não nso pertence, mas apenas à
inexperiência da pessoa que a tem. Nossa reação deixa o preconceito com
a pessoa, não conosco; faz-nos acreditar mais em nós mesmos e nos
respeitar também. Limita o acesso do outro a nossa auto-estima.
Pensamos que a reação é para o outro; qual nada! Somos nós os
principais beneficiados.

Um comentário:

  1. Jobita, meu amor...eu devorei todo o teu blog! Maravilhoso de se ler!Vc tem definitivamente o maravilhoso dom da escrita! Não consegui parar até encontrar o fim!
    Eu fiquei imaginando a indignação do Vi quando lhe tomaram a Ma de seus braços...lembro das coisas que voce contava de quando o Kevo era pequenino, que te tomavam ele do colo...era aflitivo...realmente!
    Amada, muita saudades das nossas conversas...
    Beijo grande!
    Espero que nosso proximo encontro não demore tanto a acontecer...

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