escrevi e achei que alguém podia tirar algum proveito em ler, nem que
fosse o de pensar que jamais diria ou pensaria o que escrevi.
***
Tempos atrás eu jamais te escreveria sobre tudo isso, mas acho que,
nos últimos anos, você adquiriu o talento de se dispor a ver uma mesma
questão por mais de um ângulo.
Ontem estávamos conversando e eu fiz referência às ajudas
desastrosas que cegos recebem ao descerem do ônibus. Você disse algo como
"eu morro de dó" e o assunto mudou. De qualquer modo, não era o ambiente
para eu expor meu ponto de vista. Agora, gostaria de fazê-lo, bem como
outras questões que talvez sirvam para refletir.
Eu tive essa vida de "cegos que recebem auxílios absurdos" por cinco
anos.
Eu acordava às 5:30 da manhã, tomava banho
e café, pegava minhas coisas, bengalava até o ponto de ônibus, tomava
meu coletivo e descia no centro da cidade apinhado para ir à escola.
Assistia às 5 ou 6 aulas e repetia o caminho de volta.
Era forçoso que fosse assim. Nós não tínhamos carro, fato bastante
comum em cidades grandes e, se o ônibus estava ali, gratuito, não tinha
tanto porquê pegar táxis e coisas assim.
Nunca tive pena de mim. Na verdade, achava delicioso. É
indescritível a sensação de bengalar por uma rua, sentir o vento no
rosto, as pessoas passando por nós. A sucessão dos cheiros, a emoção da
descoberta do terreno, conquistando cada paralelepípedo do chão. Faz
muita diferença na auto-estima da gente. Dá muito mais segurança para
enfrentar os outros momentos do dia.
É maravilhoso galgar os três degraus para dentro do coletivo, ficar
em pé ou sentada ali, sentindo a presença de gente, o gosto da vida, o
barulho do tráfego. Depois, na descida, é tragicômico as pessoas
querendo te ajudar, não saberem como, mas tentando e, sobretudo, ninguém
questionando o seu direito de estar ali, entre eles.
Depois, nas "rodas de cegos", ter histórias hilárias para contar
sobre essas tentativas desajeitadíssimas das outras pessoas. Competimos
sobre a hilariedade dos nossos tombos, sobre as loucuras que nos dizem.
E enquanto nos expomos a tudo isso, estamos "amaciando" o
caminho para quem vem depois; estamos derrubando muros de preconceitos e
fazendo bem aos outros, enquanto nos fazemos bem a nós mesmos.
Eu nunca tive pena de mim, até vir morar aqui. Nunca pensei na minha
cegueira como algo limitante, porque eu fazia o que os outros faziam, só
que de uma forma diferente. Na minha mente era tudo simplista, até: uns
são gordos, outros são magros, uns são geniais, outros idiotas, uns são
músicos, outros acróbatas, outros miméticos e eu sou cega. Simples
assim.
A cegueira é uma aliada bizarra para eu aprender as coisas que
preciso. Por algum motivo, Deus acreditou que eu precisava dessa
experiÊncia para temperar meu caráter, para fortalecer meu espírito, e
isso era normal para mim.
Aqui eu tive pena, muita pena de mim. E raiva, por permitir que a
miopia dos outros cegasse meu espírito e me incapacitasse para os meus
desafios. Eu sentia a vergonha que sua família tinha de mim, quando eu
usava a bengala na frente deles. Pediam uma, duas, três, quatro vezes
que eu a guardasse, como se eu estivesse fazendo algo extremamente
indecoroso, grosseiro. E eu guardei. E praticamente nunca mais usei.
Isso sim é digno de pena. Você só poder ir se alguém for
contigo, ou se tiver, no mínimo, 12 reais para pagar por isso. Você não
poder dar uma volta no quarteirão em um dia de extremo calor, ou
simplesmente porque está entediada em casa. Você perder a coragem de se
conhecer, se descobrir, aventurar-se pelos terrenos e, sobretudo, perder
a coragem de errar.
Eu sentia muito no Vi, e sinto ainda em você, muito, muito medo de
errar. E tenho muita raiva de mim por, mesmo lutando contra isso con
todas as minhas forças, ter absorvido parte desses conceitos. Qual o
problema de você cortar as unhas dos seus filhos? Você pode machucar?
Nunca conheci um normovisual que jamais tivesse feito isso. Nunca. Vai
ficar torto no começo? E daí que fique? Acho que as lixas existem para
isso. Você tem quem faça isso para você, e é mais fácil e mais rápido?
Mas cuidar dos filhos é um ato de amor. Você não apenas dá banho, troca
uma fralda, veste uma roupa ou corta as unhas. Crianças são
hipersensíveis ao toque, especialmente às energias que enviamos enquanto
os tocamos. Cortar as unhas também é um gesto de amor, e você tem todo o
direito de querer fazer esse carinho - por que não? E daí se for
difícil? Diga ao menos *uma coisa* realmente valiosa do ponto de vista
espiritual que seja fácil.
Se normovisuais erram, é normal; se nós erramos,é porque somos
cegos, é prova da nossa incapacidade; e por medo de errar, nos tiramos o
direito de tentar. Temos vergonha da pena dos outros, porque ela espelha
nossa própria piedade deslocada, porque o erro é inerente à vivência na
Terra. Pessoas erram. Algumas cortando unhas, outras cortando a alma das
pessoas. Assim a vida funciona. Quando o medo do erro gera precaução é
bom, porque ninguém quer ser irresponsável; mas quando o medo do erro
impede o esforço de tentativa, é doentio, é limitante, é até uma negação
da nossa missão primordial na Terra, que é evoluir. E ninguém evolui sem
passar pelo erro, pelo desastre, pela necessidade pungente do recomeço.
Eu daria quase tudo para voltar à vida de antes. Para pegar ônibus,
para não sentir vergonha de pegar minha bengala e bengalar pelas ruas e
me sentir viva com isso. Não acho digno de pena ser puxada, quase
derrubada por ajudas inéptas demais; acho digno de pena ficar amarrada à
própria cegueira, como se ela fosse uma cadeia para nossa alma, não uma
forma da Vida ampliar seus sentidos.
Hoje não culpo mais a ninguém porminha inadaptação a Guaxupé. A culpa
foi toda minha, que não coloquei meus limites, que não me preservei de
tudo que ouvi, que não preservei meus tesouros de emanssipação. Eu me
deixei aprisionar, na esperança de ser aceita e acolhida. Entreguei as chaves de minha independência e
autonomia físicas. Mas não posso deixar de ter raiva, acho que mais
contra mim que contra as pessoas. Em algum momento, eu pude escolher e
não escolhi; eu pude me rebelar e cedi; eu pude continuar bengalando
e guardei a bengala. Às vezes eu penso que tudo seria melhor se algumas
das pessoas que me trataram com preconceito me pedissem desculpas, ao
verem que os fatos negavam o pré julgamento. Mas talvez admitir um
erro seja demais para a auto-estima fragilíssima. Talvez a única
garantia que elas tenham para preservar o edifício do seu
auto-respeito
seja o esforço de se convencer de que estão sempre certas.
Às vezes eu sinto por você. Não digo que tenho pena, porque uma
mulher tão bonita e inteligente e forte é indigna desse sentimento. Mas
eu sinto por vocÊ raramente ter explorado seus reais limites; ter
aceitado que o que os outros diziam que você não podia, ou não devia, ou
não era seguro era um conceito absoluto. Não é. Você pode muito mais do
que você pensa, e disso eu tenho certeza. É agoniante às vezes, sabe? É
como ver uma flor com o crescimento restringido a um vaso exíguo quando
tem um jardim imenso a sua disposição, palmos e palmos de terra aonde
deitar suas raizes, sugar água do solo, forjar nutrientes para as
folhas. Eu acho quase criminoso.
Não consigo ver a cegueira como uma doença. Não é, e confesso que
ver você usando o termo "olho dodói" para explicar sua deficiência aos
seus filhos me deixa louca. Eu sei que
deficiências têm um número no cid (código internacional de doenças), mas
elas não são mais consideradas "doenças" desde a década de 70. NOssos
olhos não são doentes. Nem o seu, nem o meu. Eles não enxergam
como deveriam, simplesmente isso. Mas isso implica mais "caminhos
alternativos" que impeditivo para se caminhar. O fator realmente
limitador reside no espírito, na mente que se permite cristalizar na
piedade ou na falta de coragem para buscar os caminhos que funcionem.
Nós estamos "condenadas" a usar as mãos para fazer as coisas, não
necessariamente a não fazê-las. O termo doença infunde pena, e a pena
infunde um determinismo ferrenho, acompanhado de um sentimento de
superioridade de quem sente com a inferiorização do alvo.
Eu espero muito que o nascimento da sua filha seja um divisor de
águas para você. Que, ao fim dessa gestação, o amor pelo seu bebê te
leve aonde você nunca foi... Sozinha.
Que os seus dedos descubram a segurança do toque, a força do cheiro,
o paladar do encontro com o serzinho que saiu de seu ventre sem
intermediários. Que você se permita descobrir os seus caminhos, o seu
modo de fazer, para ser realmente quem você é, e não o que esperavam que
você fosse.
Com respeito e meus melhores votos de bom parto e muito leite,
Jo
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