O quarto perfeito esperava um bebê perfeito, que em breve teria
covinhas e gritinhos. Como supor que aquele bercinho pudesse abrigar um
bebê totalmente disforme? Não combinava. Parecia que Deus errou.
Ele é frágil demais para mamar. Frágil demais para respirar sozinho.
E será frágil demais para brincar com as outras crianças. Dificilmente
terá condições de acompanhá-las, no ritmo normal, e você me pergunta por
que Deus permitiu que isso acontecesse contigo, com a sua família, com o
seu filho.
Eu soube, porém, que você não queria resposta. Só queria chorar sem ser
julgada. Só queria uma mão na sua, enquanto seu bebê lutava por uma vida
que, aos seus olhos, não valia a pena.
Então ele saiu do hospital. Precisaram de uma enfermeira para o monitorar,
porque a situação ainda era crítica. O ganho de peso era apenas o
estritamente necessário, jamais o ideal, e a minha amiga se devotou.
Passou, como dizem, do "luto à luta", e ao ver a tenacidade com que seu
bebê lutava para continuar, não teve escolha além de assumir que,
independendo do que ela pensasse e sentisse, aquela vida valia a pena,
para ele.
Nos meses que passaram, você se descobriu. Lutou, reununciou,
esperneou. Mudou de médico uma infinidade de vezes, levou para outros
estados, consultou especialistas e foi com seu bebê ao shopping.
Ah, mas para quê? As pessoas encaravam e quase não paravam mais.
Murmúrios de pena eram distribuídos sem nenhuma complacência com seus
ouvidos, e você, novamente, questionou tudo em que acreditara até então.
Seu pequeno não deverá mais sair de casa, para ser protegido do
escárnio de uma "sociedade perfeita"; seu filho não deverá mais ser
exposto ao reproche e ao preconceito, à piedade degradante e ao
desrespeito dos demais. Por que submetê-lo a isso, tendo ele uma m ãe
amorosa e um pai dedicadíssimo, um quarto cuja perfeição não se
constrangeu ao receber um bebê que jamais andará nem pensará como
estamos acostumados a ver?
Entretanto eu te suplico que não faça isso. Que permita ao seu filho
ensinar às pessoas que eixstem outras formas de viver; que permita que
nossa "sociedade perfeita" seja chocada e provocada pelas pernas
deformadas do seu filho, por aqueles absurdos olhos lúcidos em uma cab
eça grande demais.
E não é para que os outros olhem e pensem quão perfeitos eles são,
quão felizes eles são, não! Mas para que aprendam que a vida e o amor
têm mil formas de vir ao mundo.
Nas décadas passadas, milhares de mães pensaram como você e
protegeram seus filhos. Em geral, tornavam-se pequenas flores de estufa,
segredinhos escuros, como manchas na família... Sercados de amor e bens,
mas também de vazios e falta de horizontes.
Com o tempo, essas mesmas mães começaram a espernear. Exigir
tratamento justo. Esperar que seus filhos pudessem estudar e ganhar o
pão dignamente - por que não?
Hoje, deficientes do mundo inteiro não são mais preservados. São
expostos - às vezes até expostos demais, mas esse é outro caso - e, na
trilha desse movimento, rios de amor e de mudanças afluem aos corações
ressequidos de outras famílias; profissionais descobrem que seu trabalho
ideal é lidar com os visivelmente imperfeitos, e com eles trilham seu
caminho de sabedoria.
Então, por favor, tire seu filhinho de casa, que atrás do seu gesto,
toda a dor e renúncia terão ainda mais significado.
Nossa vida é o que fazemos dela; nossas deficiências, também. Por isso estou aqui.
Um detalhe é motivante de tudo isso: eu sou cega. Esse é um aspecto
concreto e muito improvável de ser modificado, um dia. Podem encontrar
termos grandiloquentes, imponentes, maquiados, politicamente corretos ou
incorretos, mas nada muda o fato central, o que não é obrigatoriamente
ruim.
Mas note que a questão começa e termina aí. Eu sou cega. Fim. Não há
nada de errado com minhas pernas, com meus ouvidos, e menos ainda com o
meu cérebro. Eu penso muito bem. Podem não ser sempre coisas boas e
certas, mas definitivamente eu consigo raciocinar, concatenar as idéias,
alinhar paradigmas.
Não sou santa. Posso mentir, se quiser. Posso caluniar. Posso fazer
péssimos julgamentos sem nenhuma base, então, definitivamente, não sou
santa.
Claro, tenho o compromisso de progredir sempre, de aprender com meus
erros, de fazer de mim mesma uma pessoa melhor, mais humana, mais
responsável e mais digna, mas, absolutamente, não estou sequer na metade
desse processo. Então, deixemos os extremos, as fantasias e os
preconceitos e cheguemos aos fatos. Eu sou cega. E humana. Um fato não
exlui o outro. Eles apenas se completam.
Do mesmo modo que existem humanos idiotas, humanos geniais, humanos
cadeirantes, humanos medíocres, humanos sentimentais, humanos
"umbigocÊntricos", existem humanos cegos - que podem, ou não, serem todas
essas coisas apontadas logo ali. Mas o essencial que preciso expressar,
é que a cegueira não traz, nem a incapacidade absoluta, nem a santidade
instantânea, nem a burrice extrema, nem nada disso. É simplesmente uma
característica, uma limitação que pode ou não ter um caráter realmente
limitante. A cegueira é o que o cego faz dela. Nós ainda temos escolha.
Temos harbítrio. Temos a chance de sair de nós mesmos e ir além de
falta de visão; do mesmo modo, podemos nos enterrar em nossos problemas
e lamentar o nosso nascimento, as mazelas sociais e a existência de
Deus, como qualquer pessoa normal.
Bem-vindos ao "Diário de uma cega""
concreto e muito improvável de ser modificado, um dia. Podem encontrar
termos grandiloquentes, imponentes, maquiados, politicamente corretos ou
incorretos, mas nada muda o fato central, o que não é obrigatoriamente
ruim.
Mas note que a questão começa e termina aí. Eu sou cega. Fim. Não há
nada de errado com minhas pernas, com meus ouvidos, e menos ainda com o
meu cérebro. Eu penso muito bem. Podem não ser sempre coisas boas e
certas, mas definitivamente eu consigo raciocinar, concatenar as idéias,
alinhar paradigmas.
Não sou santa. Posso mentir, se quiser. Posso caluniar. Posso fazer
péssimos julgamentos sem nenhuma base, então, definitivamente, não sou
santa.
Claro, tenho o compromisso de progredir sempre, de aprender com meus
erros, de fazer de mim mesma uma pessoa melhor, mais humana, mais
responsável e mais digna, mas, absolutamente, não estou sequer na metade
desse processo. Então, deixemos os extremos, as fantasias e os
preconceitos e cheguemos aos fatos. Eu sou cega. E humana. Um fato não
exlui o outro. Eles apenas se completam.
Do mesmo modo que existem humanos idiotas, humanos geniais, humanos
cadeirantes, humanos medíocres, humanos sentimentais, humanos
"umbigocÊntricos", existem humanos cegos - que podem, ou não, serem todas
essas coisas apontadas logo ali. Mas o essencial que preciso expressar,
é que a cegueira não traz, nem a incapacidade absoluta, nem a santidade
instantânea, nem a burrice extrema, nem nada disso. É simplesmente uma
característica, uma limitação que pode ou não ter um caráter realmente
limitante. A cegueira é o que o cego faz dela. Nós ainda temos escolha.
Temos harbítrio. Temos a chance de sair de nós mesmos e ir além de
falta de visão; do mesmo modo, podemos nos enterrar em nossos problemas
e lamentar o nosso nascimento, as mazelas sociais e a existência de
Deus, como qualquer pessoa normal.
Bem-vindos ao "Diário de uma cega""
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